Documentos revelam que os criminosos faccionados montaram um sistema de suporte ao Marcola e atribuíram chefes para cada região
Em 22 de março de 2019, um grande aparato das forças de segurança indicava a chegada de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, ao Distrito Federal. O chefe da facção Primeiro Comando da Capital (PCC) se juntaria a 33 presos alocados na recém-inaugurada Penitenciária Federal em Brasília (PFBRA), vigiada por policiais penais, militares do Exército e que também conta com a inteligência da Polícia Federal. Ativa desde 2018, a PFBRA é a quinta unidade do Sistema Penitenciário Federal (SPF) e abriga, atualmente, 32 detentos de alta periculosidade — 30 em regime fechado e dois no provisório — , entre eles, o irmão de Marcola, Alejandro Juvenal Herbas Camacho Junior, o “Marcolinha”.
Diferentemente das outras penitenciárias federais do país (Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Norte e Rondônia), em que, cada uma, tem mais de 100 internos, a de Brasília é a que tem menos custodiados e acumula 208 vagas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) elaborados entre julho e dezembro de 2021.
Não é por acaso que a transferência de Marcola à capital federal provocou forte reação das autoridades locais. O próprio surgimento da célula do PCC em Brasília é consequência de uma das vindas de Marcola à “Terra dos Candangos”, como a facção se referia à cidade. Marcola esteve detido na capital pela primeira vez em 2001, quando foi transferido da Penitenciária Modulada de Ijuí (RS). À época, mesmo isolado no Complexo Penitenciário da Papuda, ele criou um braço do PCC junto aos aliados chamado Paz, Liberdade e Direito (PDL).
“As informações coligidas indicam que o preso Marcos Willian Herbas Camacho já aglutinou, no breve período de permanência neste CIR — Centro de Internamento e Reeducação, vários seguidores, os quais, segundo consta, intencionam subverter a ordem e a disciplina neste estabelecimento prisional”, revela ofício enviado à Justiça pelo então diretor do CIR, o delegado Márcio Marquez de Freitas.
Esse registro oficial de que o PCC se espalhava como uma seita entre os presidiários da Papuda foi feito um mês depois da chegada do Marcola ao DF, em 2001. O ofício, encontrado entre documentos mantidos pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), indicava que o criminoso planejava fazer um policial penal como refém. Para relatar o plano, ele usou um celular para ligar ao irmão, o “Marcolinha”. O recado era claro: avisou que iria “sacudir a Papuda”. A empreitada criminosa fracassou após um dos membros, identificado como Cláudio Barbosa da Silva, o Barbará, delatar à polícia os detalhes do plano. A confissão seria uma forma de se proteger, uma vez que ele estava jurado de morte dentro da própria facção.
Fortalecimento
Documentos oficiais obtidos pelo Correio dão conta que, antes de Marcola vir para Brasília, em 2019, a facção crescia de forma lenta e orgânica. O cenário se inverteu após a chegada das lideranças do PCC e influenciou no fortalecimento da célula brasiliense “num nível jamais observado”. Segundo dados obtidos pela reportagem, a média de presos cadastrados como faccionados do Primeiro Comando da Capital nos últimos quatro anos varia entre 110 e 130 pessoas.
O relatório de inteligência pontua que a transferência do chefe da facção tornou a célula do DF mais organizada, com a estruturação da hierarquia local e a maior presença da “Sintonia dos Gravatas” — ala da facção que dá apoio jurídico aos criminosos. Essa movimentação também propiciou a descoberta da existência de “casas de apoio”, que serviam como base para a célula local, para a hospedagem de parentes de presos e como esconderijo de criminosos. Até então, essas mesmas casas só haviam sido observadas nos estados de São Paulo e do Paraná, locais onde a cúpula já era consolidada.
Diretor do Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado da Polícia Civil (Decor/PCDF), Leonardo de Castro Cardoso, explica que, quando Marcola chegou à capital, em março de 2019, houve uma movimentação geral da facção no sentido de intensificar as tentativas de estabelecimento no DF, inclusive enviando mais advogados. “Em uma das operações, percebemos que os criminosos tentavam alugar casas de apoio. Logo em seguida, deflagramos outras duas operações e isso acabou esfriando um pouco”, frisa. O Decor já desencadeou, ao menos, 10 operações contra as organizações criminosas em menos de nove anos.
Na tentativa de fortalecer a organização, o PCC começou a angariar membros em cidades do Entorno do DF: Águas Lindas de Goiás, Luziânia, Cidade Ocidental e Formosa. Nesses municípios, a facção montou bases de apoio em áreas isoladas. No DF, o Primeiro Comando da Capital está concentrado nas regiões de Samambaia, Santa Maria, Planaltina, Recanto das Emas e Riacho Fundo, segundo investigadores. “Há cerca de dois anos, eles (integrantes do PCC) cortaram esse vínculo com o estado de Goiás e passaram a focar só no DF. Não há uma explicação definitiva sobre o motivo de eles preferirem essas cidades da capital, mas geralmente é onde há mais habitantes”, explica o delegado Adriano Valente, chefe da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco/Decor).
As investigações mostram que a base de sustentação financeira da organização criminosa é o tráfico de drogas. Mas uma denúncia do MPDFT enviada à Justiça em 2020 deixa claro que a venda de entorpecentes não é a “atividade fim” da facção. “A prática de tráfico de entorpecentes, embora massiva, não representa a finalidade para a associação ordenada dos integrantes da horda delituosa, mas sim um dos meios para o financiamento e estruturação da facção, com o escopo de que ela, uma vez fortalecida, consiga atingir seus objetivos estatutários de subversão da ordem por meio da prática de variadas outras atividades criminosas”, revela trecho do documento.
Divisões
O PCC dividiu o DF em áreas, cada uma sob o domínio de uma ala da facção, muitas vezes com mais de um mandatário. Inquérito da Polícia Civil mostra que as atividades na capital são controladas pela “Geral do Estado”, uma espécie de escritório central que controla as tarefas na unidade federativa.
Sem precedentes, a facção desenvolveu divisões microrregionais. A estratégia seria uma forma de tornar mais efetiva a atuação do grupo no contexto de forte repressão policial que encontraram na capital. “As ruas de Brasília, inclusive a área tombada como patrimônio histórico, não estão mais sob a responsabilidade do estado, mas sim dos Gerais das Regiões, incorporadas pelo PCC para dominação do Distrito Federal”, pontua o relatório.
O documento revela que as atividades no Plano Piloto são controladas pela “Regional da Capital”. A “Regional Norte” trata dos crimes cometidos em Brazlândia, Sobradinho, Lago Norte e Planaltina. A Sul, abrange Santa Maria, São Sebastião, Lago Sul, Núcleo Bandeirante, Park Way e Gama. A Regional Leste compreende as regiões do Itapoã, Jardim Botânico, Riacho Fundo, Candangolândia, Cruzeiro, Sudoeste/Octogonal e Paranoá. Já a Oeste trata de Ceilândia, Guará, Águas Claras, Estrutural, Recanto das Emas, Taguatinga e Samambaia.
Cada uma das regionais tem um chefe responsável por tomar decisões sobre o cometimento de crimes e a mediação de impasses entre os bandidos. O “Resumo Disciplinar” é a divisão em que atuam os fiscais internos do PCC, que avaliam se os faccionados seguem as regras impostas pelos superiores. Eles atuam junto ao “Final do Resumo”, o Tribunal do Crime do PCC. É esse “departamento” que julga e aplica punições sangrentas aos membros de facções rivais e até mesmo da própria facção.
Há, ainda, as funções dos “cadastreiros” e da “Geral do Cadastro”. Espécie de cartorários e tabeliães, eles são responsáveis por coletar as informações de membros batizados pelo PCC, preencher fichas de cadastro e atualizar os “vulgos”. A captura dos “cadastreiros” é vista como parte essencial das investigações da polícia, pois permite decodificar as conversas dos criminosos interceptadas pelos órgãos de controle e, muitas vezes, identificar grande quantidade de membros.
Sistema penitenciário
De dentro das cadeias do DF, o PCC também dita regras. A sintonia “Geral do Sistema” é responsável pela organização da facção nas penitenciárias, tendo poder para coordenar conflitos e rebeliões. Toda infraestrutura de comunicação entre os presos e os criminosos que estão nas ruas é providenciada pela “Geral da Fora do Ar”, em que a principal missão é conseguir infiltrar rádios de transmissão e celulares nas prisões. Com os aparelhos em funcionamento, entram em ação os “salveiros”, responsáveis por coletar as ordens dos chefes da quadrilha e difundir os “salves” — mensagens informativas enviadas coletivamente para uma malha de compartilhamento.
Já do lado de fora das penitenciárias, alguns familiares de presos faccionados também acumulam papel importante na organização. No decorrer das investigações da Polícia Civil, constatou-se que os criminosos são responsáveis por organizar e até financiar manifestações de visitantes de presídios contra o sistema prisional e o Estado. O objetivo é conseguir benefícios para os detentos, como melhoria nas refeições.
Esses familiares também recebem uma espécie de pagamento da própria facção. Para parentes de presos comuns, o valor é de cerca R$ 200. Já para os criminosos lotados na Penitenciária Federal, o “salário” chega a quase R$ 10 mil. “O monitoramento ininterrupto ocorre, também e principalmente, dentro dos presídios. É de lá que os faccionados presos enviam recados dando ordens e avaliam a atuação de quem está do lado de fora. Os recados são enviados por meio de familiares e advogados. Até hoje, desde 2014, eles não conseguiram se estabelecer”, afirma o delegado Adriano Valente.
Frase
“Percebemos que os criminosos tentavam alugar casas de apoio. Em seguida, deflagramos outras duas operações e isso esfriou”, Leonardo de Castro, coordenador do Decor.
Por CB