Câncer de mama: atraso no protocolo do SUS penaliza pacientes…

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O câncer é uma doença “democrática”. Homens e mulheres, ricos e pobres, adultos, idosos e até crianças podem apresentar crescimento desordenado de células que cria um tumor e, em muitos casos, leva à morte. O câncer de mama é o mais comum entre as mulheres. De acordo com informações do Instituto Nacional de Câncer (Inca), só em 2021, 66.280 pessoas devem ser diagnosticadas com esse tipo de neoplasia, e a estimativa é que 18.295 delas morram em consequência da enfermidade.

O tratamento dos tumores de mama, porém, é muito diferente dependendo de onde é realizado. Estima-se que o Sistema Único de Saúde (SUS) esteja até 20 anos atrasado em relação à Saúde Suplementar, oferecida pelos planos de saúde. Em setembro de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que 71,5% dos brasileiros, mais de 150 milhões de pessoas, necessitam do SUS para qualquer tratamento.

As pacientes com diagnósticos semelhantes não só recebem medicamentos muito diferentes como também passam por um tempo de tratamento distinto. Na rede privada, em menos de um mês, a pessoa é diagnosticada e faz a cirurgia para remoção do tumor. No SUS, esse mesmo processo – que por lei deve demorar, no máximo, 60 dias – pode levar mais de três meses. Enquanto isso, o câncer avança.

Presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama), a mastologista Maira Caleffi lembra que quanto mais o tratamento demora para ser iniciado, pior o câncer vai ficando. Além disso, os casos que são diagnosticados no SUS acabam sendo mais avançados, estando em estágios em que é ainda maior a defasagem dos medicamentos.

“De acordo com o nosso manual de conduta médica, temos de oferecer sempre o melhor para o nosso paciente. Alguns colegas da rede pública se veem sem ter remédio disponível. É uma situação muito dramática”, conta a médica, que chefia a mastologia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

Tratamento ultrapassado

“Apesar de a medicina ter tornado o tratamento do câncer cada vez mais personalizado, no SUS ainda usamos uma mesma receita para quase todos os pacientes. Quando falamos de tratamento, é preciso falar de cirurgia, radioterapia, e a terapia sistêmica, que são as medicações”, explica Rafael Kaliks, diretor científico do Oncoguia, organização da sociedade civil que encabeça a luta dos pacientes.

Segundo Kaliks, o problema começa na cirurgia: o SUS não paga a simetrização da mama nem próteses mamárias após o procedimento, ou seja, a qualidade de vida da paciente já começa a ser impactada ainda no início. Na radioterapia, outra dificuldade: a maioria dos pacientes precisa do tratamento, mas muitos não conseguem fazê-lo pela falta de equipamento e devido a filas enormes para atender toda a demanda.

A maior diferença entre público e privado, o abismo entre o tratamento de quem paga plano de saúde e quem depende do SUS, são os medicamentos, principalmente os indicados para pacientes com câncer de mama avançado, que já se espalhou para outras partes do organismo.

“Para 70% das pacientes com câncer de mama disseminado existe uma classe de remédios chamados inibidores de ciclina, e eles não estão disponíveis no SUS. Quando se oferece esse medicamento com a hormonioterapia, o tempo de controle da doença passa de 13 meses para 30 meses. Os remédios possibilitam que as mulheres vivam mais tempo. Mas, lamentavelmente, essa não é uma opção na rede pública”, frisa Kaliks.

E o problema não está focado apenas no câncer de mama. O oncologista Gilberto Amorim, membro do comitê de tumores mamários da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), pontua que, em relação ao câncer de pulmão, por exemplo, o tratamento na rede pública está parado desde os anos 1990.

“Existem medicações específicas que estão na saúde suplementar há décadas, e não estão no SUS. Em melanoma, usa-se imunoterapia no privado há mais de 5 anos. O tratamento público é o mesmo que se fazia quando comecei a atender, em 1994. Isso não é aceitável”, salienta. “Existem estudos brasileiros que mostram que os desfechos dos pacientes são piores na rede pública. É perverso demais ver isso acontecer e não lutar contra”, assinala o oncologista.

Dificuldades na incorporação

Para que um medicamento seja incorporado e usado no SUS, ele deve ser aprovado pela Anvisa e submetido à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao Sistema Único de Saúde (Conitec).

“A incorporação ou não de uma tecnologia está atrelada à ATS, um processo complexo que vai além do custo benefício de uma medicação. Inclui análises econômicas e de estudos comparativos entre as drogas já incorporadas e as novas”, explica o oncologista Fernando Maluf, fundador do Instituto Vencer o Câncer.

Apesar, porém, de as leis ditarem prazo máximo para análise e disponibilização do tratamento, elas frequentemente não são cumpridas. No caso específico do câncer, Kaliks afirma que as pessoas responsáveis por julgar os processos de incorporação costumam dizer que os remédios oncológicos não são tão bons, ou que possuem efeitos colaterais indesejáveis – frequentemente ignorando consensos internacionais.

“Há um viés ideológico na avaliação dos tratamentos contra o câncer na Conitec. Acredita-se que os remédios são uma forma de os laboratórios ganharem dinheiro. Entra governo e sai governo, esse entendimento segue, destroçando a oncologia pública do Brasil”, lamenta Kaliks.

O diretor do Oncoguia compara a oncologia a outros ramos da medicina para exemplificar o problema: a reumatologia e a hepatite C têm tratamentos de ponta no SUS, com um atraso de, no máximo, dois anos.

“Enquanto isso, a oncologia está com 20 anos de atraso. Fala-se que o preço é extraordinariamente caro, mas o governo brasileiro é o maior comprador de droga do mundo. Imagina o poder de negociação?”, questiona.

Amorim, da SBOC, concorda. “A comissão, infelizmente, acabou tendo um viés político ao longo dos anos. Muitas pessoas que não estão qualificadas para estar lá bloqueiam o acesso. O impacto do paciente oncológico é alto, porque são muitas pessoas, mas quando o governo quer, ele consegue negociar de forma brutal”, afirma.

O oncologista diz que há uma desorganização do sistema de incorporação de medicamentos em geral, mas, no fim das contas, o que o Brasil precisa é de uma política de Estado para lidar com o paciente oncológico, algo que já existe para a aids, por exemplo. “É Outubro Rosa, coloca-se uma luz rosa no Congresso, mas o que se faz efetivamente para melhorar acesso e diagnóstico precoce? A gente tem a Lei dos 30 Dias para diagnóstico, o cumprimento é pífio, e não dá para culpar o coronavírus”, diz o representante da SBOC.

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde para questionar sobre os atrasos na análise e na negociação de medicamentos, mas foi respondida com uma nota informando apenas sobre as funções da Conitec, sem esclarecimentos para as questões levantadas.

Diferenças dentro do próprio SUS

Se o abismo é profundo quando se compara o tratamento no SUS e o oferecido pelos planos de saúde, ele também existe dentro do próprio serviço público. Como a compra dos medicamentos é feita pelos hospitais e municípios, e a tabela de alguns procedimentos não é atualizada há décadas, apesar de alguns tratamentos estarem, na teoria, disponíveis pelo SUS, não são realidade para o paciente.

“O SUS é tripartite. Portanto, estados com maior infraestrutura de saúde têm melhores condições de tratamento. O estudo ‘Meu SUS é Diferente do seu SUS’, publicado no Brazilian Journal Of Oncology 2017, mostrou que existem grandes diferenças no padrão de tratamento sistêmico para os quatro tipos mais incidentes de câncer entre os centros de tratamento do SUS”, explica o oncologista Maluf.

A diferença pode acontecer até dentro da mesma cidade, onde alguns hospitais públicos conseguem verbas filantrópicas para melhorar o atendimento, enquanto outros sequer dão conta de arcar com o que o SUS preconiza. Amorim, da SBOC, dá o exemplo do Hospital do Amor, em Barretos, uma referência no tratamento de câncer pelo SUS.

A situação, que é ruim no SUS, tende a piorar: além da falta de iniciativas para tentar resolver o problema, a pandemia dificultou ainda mais o acesso ao diagnóstico, e os pacientes que chegam hoje ao serviço de saúde estão com tumores mais avançados e de difícil tratamento. A crise econômica também fez com que muitas pessoas precisassem abandonar o plano de saúde para passar a contar apenas com a saúde pública.

“Estima-se que, no período da pandemia, não foram diagnosticados 4 mil novos casos de câncer de mama, mas não há sinais de nenhum esforço específico por parte das autoridades de saúde para localizar essas mulheres. Também, neste período, processos de inclusão de novas tecnologias tiveram atrasos”, conta Maluf, do Instituto Vencer o Câncer.

Kaliks considera que a quantidade de novos pacientes deve sobrecarregar ainda mais o sistema, e a mortalidade por câncer deve aumentar nos próximos anos. “É uma tragédia indescritível”, destaca.

Desafios também na saúde suplementar

Apesar de estar muito à frente do SUS, a saúde suplementar também tem sua parcela de problemas e está longe de ser perfeita. Quem regulamenta os medicamentos que serão incorporados pelos planos de saúde é a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Na saúde suplementar, a luta agora é pela PL da quimio oral, um projeto de lei que prevê a incorporação imediata de medicamentos orais para quimioterapia na rede privada. Isso já acontece com remédios injetáveis para câncer, e a comunidade médica se mobilizou para tornar a regra igualitária também para as drogas que vêm em comprimidos.

O projeto, porém, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que alegou falta de previsão da fonte do dinheiro para essas incorporações – apesar de o PL ser para a rede privada, e não envolver qualquer recurso público. Agora, a pressão é para o Congresso derrubar o veto e colocar o assunto em pauta novamente.

Por Metropoles

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