Por Renato Sérgio de Lima e Roberta Astolfi, Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Para que serve a prisão? Segundo o Direito e a História, a função social do cárcere é uma combinação de retribuição ao criminoso do mal causado à sociedade; de ressocialização do malfeitor para a volta ao convívio social; e de contenção física visando ao impedimento de novos crimes – contenção perene ou temporária a depender do grau de periculosidade percebida socialmente.
Sim, a percepção é importante: muitos crimes são assim reconhecidos em um tempo histórico e/ou país; mas não necessariamente o são em outros tempos e locais. O crime é uma construção social de cada sociedade e estabelece os limites para a ação individual.
Ao longo de sua história, o Brasil, no caso, é uma nação que aceita patamares muito elevados de violência letal, seja ela emanada das próprias relações sociais (brigas, violência doméstica); da ação do crime organizado; ou ainda das respostas do Estado, em especial por intermédio de suas agências policiais.
No presente contexto, o comércio de algumas drogas específicas foi eleito como o grande mal da vida contemporânea, inimigo número um do povo. Mas, em outra direção, a população acredita no ditado “Bandido bom é bandido morto” e temos uma das polícias que mais morrem e matam em conflitos cotidianos.
Por tudo isso, se olharmos em perspectiva, fica a dúvida: a prisão está entregando o que se espera dela? Em relação à ressocialização, são acachapantes as evidências de que os estados brasileiros e a União não são capazes de fornecer as condições mínimas para tal projeto e temos nos contentado, enquanto sociedade, com as funções de retribuição e contenção, acreditando que esses papéis estão sendo cumpridos.
Vejamos. A prisão foi descrita pelo sociólogo Erving Goffman como instituição total pelo seu caráter de controle intenso sobre a vida de seus habitantes. Porém, o fato é que entre as pessoas presas e o restante da sociedade não estão muralhas impenetráveis, mas paredes porosas, portões e grades por onde ocorre um sem número de trocas, inclusive de poder.
O poder das facções criminosas flui mais intensamente quanto maior o estoque de pessoas que têm à disposição para controlar, poder que se estende sobre os familiares das pessoas presas e se espalha por comunidades e bairros inteiros. O crime organizado hoje tem na prisão o seu maior eixo de poder e, se não enfrentarmos o dilema prisional, só estaremos jogando para a plateia com anúncios pirotécnicos como o da intervenção federal no Rio de Janeiro.
A chance de sucesso da intervenção diminui na exata medida em que deixamos intocadas as políticas criminais atuais, não fazemos um debate sobre as reais causas da violência e não enfrentamentos a profunda crise federativa e republicana de implementação de políticas públicas de segurança e justiça criminal. Ficamos reféns do medo e das nossas opções institucionais que lotam as prisões.
E, se este é o ponto, quanto maior a população carcerária, mais complexo é o manejo do cotidiano prisional por parte dos agentes que colocamos lá para guardar essas muralhas. No Brasil há, em uma média, um agente para cada sete pessoas presas (dados de 2018 levantados por este Monitor), lembrando que essas pessoas estão distribuídas em turnos diferentes e que a recomendação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária é de um agente para cada cinco pessoas presas.
Economia perversa
Em um ano, nada menos que 21 estados tiveram aumento no número de agentes prisionais, ou seja, estamos consumindo nossos escassos recursos fiscais e humanos sem resultados visíveis. Os agentes são como escudos humanos, deixados à própria sorte e risco, mas que pelas atuais condições e falência das políticas criminais e penitenciárias não deterão o poder das facções criminosas. E a julgar pelas recentes respostas à crise da segurança pública, estamos nos preparando para fornecer ainda mais insumos para essa economia perversa. O Exército vem aderir de vez, agora como protagonista, à famigerada guerra às drogas.
O fato é que a prisão não cumpre o papel de contenção do crime e, no estágio, ela se transformou em escritório de recrutamento de novos integrantes das facções. Mas insistimos nestas velhas e ineficazes receitas. E, pior, elegemos pessoas para cuidarem desta massa de presos e não oferecemos as mínimas condições de proteção e de trabalho.
Os poderes Executivo e Judiciário e o Ministério Público fazem sua parte para sustentar o insustentável. Juízes e juízas com visão garantista, que evitam a prisão provisória para crimes sem violência, que compreendem o fracasso da política de guerra às drogas são pressionados a adotar posturas de mão dura pelo andar de cima nos tribunais de Justiça. Promotores e promotoras, na dúvida, pedem a prisão.
Diante da impossibilidade de a prisão realizar as funções atribuídas de ressocialização e contenção, apegamo-nos à sua função retributiva: nossa sede de vingança por “tudo de errado que está aí” é tão grande que nos cega diante do custo dessa decisão.
Verdade seja dita, a função retributiva da pena tem sido cumprida de forma primorosa, pois o sofrimento das pessoas encarceradas, mesmo dos poderosos líderes de grupos criminosos, é intenso e qualquer pessoa que já entrou em uma prisão sabe disso. Quanto àqueles que nunca entraram, a imagem mental de alguns corpos decapitados ajuda a dar uma ideia.
Mas o custo do apego à vendeta social é alto, pois todo o poder do crime organizado emana da população carcerária e um futuro distópico para a democracia brasileira se insinua, descrito em uma triste subversão do texto constitucional. Estamos ameaçados por um longo inverno e nunca haverá guardiões suficientes para tantas muralhas.
Renato Sérgio de Lima é diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Roberta Astolfi é pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
G1